Nas últimas semanas, o Pedro Sette-Câmara fez uma série de stories em que criticava as leituras simbólicas e filosóficas de obras literárias. Creio que esses stories entretanto se evanesceram no cyberespaço mas o seu conteúdo foi reiterado num post da sua newsletter. O assunto gerou alguma polémica e recebeu ótimas respostas do Victor Bruno e do Marcos Monteiro. Aqui vai o meu pitaco - atrasado, eu sei, eu sei…
Resumidamente, o ponto do Pedro, que parte de uma análise girardiana dos mitos, é que todas as “representações”, todos os “símbolos” ou “significados filosóficos” que vemos nos mitos são meras adições posteriores, adornos que filósofos e escritores dão a uma história que, em si mesma, é desprovida de qualquer significado metafísico. Nas palavras do próprio, “sei bem que aqui estou indo contra o senso comum que vê nos mitos uma espécie de tesouro de sabedoria. Estou dizendo que a sabedoria foi projetada neles, não tirada deles.” Daí segue-se uma análise da viagem de Ulisses que tenta desmistificar todas as construções simbólicas e filosóficas posteriores da obra.
A análise do Pedro (cujo trabalho acompanho e admiro - aliás, creio que é um dos melhores escritores em língua portuguesa da atualidade) parece-me ser a encarnação perfeita daquilo que mais me chateia em Girard (um autor fundacional para mim, sendo que é até estranho criticá-lo publicamente): um certo nothingbutness.
Passo a explicar. O nothingbutness é uma doença do espírito também conhecida como “reducionismo”, a ideia de que um certo fenómeno “nada mais é que x”. “O amor nada mais é que uma reação química”. “Uma mesa é so um conjunto de átomos”. “O teu pensamento é a mera interação de uma série de neurónios”. É uma doença comum nos nossos dias (embora cada vez menos, felizmente) mas que assolou grande parte da casta intelectual do século XIX e XX.
Veja-se, por exemplo, os mestres da suspeita, Nietzsche, Marx e Freud. Aquilo que, segundo Ricouer, une estes três pensadores, é a crença de que há uma espécie de véu de ilusões que nos impede de ter acesso à verdadeira natureza dos fenómenos. Mas assim que rasgamos esse véu, podemos ver a real causa das coisas. Para Nietzsche, esta nada mais é que vontade de poder. Para Marx, nada mais que luta de classes. Para Freud, nada mais que complexos inconscientes1.
Embora Girard se posicione contra cada um destes pensadores, ele também parece participar dessa hermenêutica da suspeita (pelo menos na sua obra de juventude - creio que isso é amenizado com a idade) ao argumentar que, na verdade, todas as construções míticas nada mais são do que a tentativa de esconder um assassinato primordial de uma vítima inocente2.
Ouvimos ecos de Girard no texto do Pedro. O mito não tem nenhum significado maior ou complexo. No máximo, o mito é uma máscara desse assassinato primordial. Ou, no caso do texto do Pedro, é apenas uma história. Uma história que foi “trabalhada por diversos autores, que deram a essa viagem sentidos diferentes”. Mas, em si, histórias como a Ilíada nada mais são que “um texto de aventuras, sem nenhum significado oculto”. Na verdade, “quem insere «simbolismos» em narrativas […] são sociedades secretas, ou então pessoas como Dante, que escrevem dialogando com uma tradição.”
Mas há um problema na leitura do Pedro: mesmo que todas as interpretações simbólicas ou filosóficas sejam adições posteriores de filósofos, porque razão é que a obra despertou sequer essas leituras? Por que é que Ulisses tem de lutar com uma série de monstros antes de voltar a casa? Por que é que não foram narrados antes outros feitos da sua vida: a primeira vez que mijou virado para o mar ou a forma como cortava as unhas?
Ou seja, por que é que tudo parece relevante? Se a descrição trigonométrica da disposição dos laços das sandálias de Ulisses nos parece ser completamente irrelevante, deve haver uma razão para isso. A razão é que, na verdade, a história de Ulisses - ou qualquer outra história - é plenamente simbólica, com ou sem a interpretação de filósofos e escritores.
O Mistério da Atenção
O grande problema da análise do Pedro é acreditar que existe um nível narrativo desprovido de símbolo e sobre o qual, postumamente, outros pensadores adicionam camadas de interpretação. Mas a verdade é que a própria narrativa é em si simbólica, ela é o fruto de um ato de atenção. Mais uma vez, Homero preferiu narrar a vitória de Ulisses sobre Polifemo à forma como ele cortava as unhas. Por quê?
Porque não existe esse nível “neutro” da realidade sobre o qual projetemos significados. Na verdade, a forma como percebemos o mundo é, ela mesma, imbuída de símbolos, finalidades, significados, sentido, etc; e isto muito antes de ler filosofia ou sequer ser alfabetizado.
Um dos temas que tem fascinado cientistas cognitivos e filósofos da mente nas últimas décadas é aquilo a que chamo o “mistério da atenção”. Long story short, o problema surge e é formulado durante o desenvolvimento da segunda geração de AI’s. Na tentativa de criar máquinas capazes de simular inteligência, os cientistas cognitivos perceberam que, sempre que tentavam resolver problemas de relativa complexidade, as máquinas simplesmente explodiam. Não literalmente, claro. Mas bugavam com a explosão combinatória de fatores/possíveis soluções/detalhes que se apresentavam.
Isto acontece porque a realidade é infinitamente complexa. O mundo apresenta-se como um mar incomensurável de possibilidades. Tudo o que vemos tem uma quantidade infinita de detalhes e, se atentarmos num detalhe específico, logo percebemos uma nova quantidade infinita de detalhes escondida no anterior.
Mas, apesar disso, somos capazes de apreender unidades. É quase um milagre que isso aconteça. Quando vejo uma caneca, eu percebo uma unidade. Não percebo milhões de átomos que formam a caneca, ou a pega da caneca, ou as bolas verdes desenhadas na mesma. Embora eu possa abstrair cada uma dessas coisas dela, eu percebo uma caneca.
Isso acontece porque, no meu ato de percepção, esse mar infinito de detalhes parece ser filtrado. O nosso ato de atenção consegue evitar a explosão combinatória de detalhes que compõe o mundo. E a maneira como isso acontece não é arbitrária. Para usar o termo de John Varvaeke, nós percebemos o que é relevante. Na tentativa de resolver um problema simples, a máquina perde-se em detalhes que nos parecem irrisórios. A máquina não consegue distinguir o que é ou não relevante.
Mas nós conseguimos. E é por isso que percebemos símbolos. Os símbolos nada mais são que o produto da nossa interação com o mundo. Eles não são uma imposição externa no nosso intelecto num reino inanimado e neutro de “factos”. Nenhum de nós percebe as coisas dessa forma. A minha caneca pode, efetivamente, ser apenas um monte de átomos. Mas eu não percebo um monte de átomos, eu percebo uma caneca. Essas categorias não são arbitrárias, não são meras construções: são parte constitutiva da nossa interação com o mundo.
Mas como é que isto se relaciona com a crítica do Pedro ao simbolismo?
Ora, se a própria forma como interagimos com o mundo é simbólica, o que dizer das narrativas que construímos? Uma história não pode ser só uma história da mesma forma que uma caneca não pode ser só um conjunto amorfo de átomos. Toda e qualquer narrativa é o exemplo perfeito de um ato de atenção. Dentro de uma quantidade infinita de dados, de possíveis ângulos de analise, de infinitas formas de descrever uma cena, o autor escolhe aquilo que é relevante.
É por isso que Homero não fez uma descrição trigonométrica da disposição dos laços das sandálias de Ulisses. E também é por isso que Polifemo, o monstro, vive numa ilha isolada, longe da civilização, surge quando Ulisses precisa de comida, habita uma gruta, devora homens, etc. Nada disso é arbitrário. Polifemo não pode ser um monstro e, ao mesmo tempo, vestir uma toga de filósofo e discutir a origem do cosmos com Ulisses. Polifemo não pode ser um monstro e viver no meio da civilização. Não é assim que as coisas funcionam. Existe um padrão na forma como percebemos a realidade. Daí emergem os símbolos.
O Fenómeno Jordan Peterson
E isto leva-nos ao por quê da fama de Jordan Peterson. Ao contrário do que jornalistas ao redor do mundo dizem, o fenómeno Jordan Peterson deve muito pouco aos seus comentários políticos ou às polémicas relativas à Bill-C16. Claro, tudo isso ajudou a catapultar a sua imagem. Mas, mesmo que muitas pessoas tenham chegado até ele por causa dos seus comentários políticos, a sua grande massa de seguidores ficou por causa das Biblical Lectures.
9.4 milhões de visualizações no primeiro vídeo de uma série que analisa o Gênesis. Sim, 9.4 milhões. E 2 horas e meia de vídeo. Como é que isso é sequer possível?
Bem, uma das principais razões para a fama das Biblical Lectures foi precisamente a capacidade do Peterson mostrar a toda uma geração que foi educada no colo do Sam Harris, Richard Dawkins e Neil deGrasse Tyson, que as histórias bíblicas não são arbitrárias. Mais do que isso, que nenhuma história é arbitrária. Que o significado não é algo que impomos no mundo.
Peterson, formado em psicologia clínica pela McGuill, professor em Harvard, e com mais de 17262 citações académicas no seu currículo, é alguém mais do que ciente desse “mistério da atenção” que instiga até hoje as ciências cognitivas. Isso, aliado ao seu estudo dos mitos e narrativas, fê-lo perceber que o nosso modo de estar no mundo é repleta de significados ou, para usar as suas palavras, é esquematizado em “maps of meaning”.
Com isso, o Peterson foi não só uma resposta às questões que o Novo Ateísmo lançou na geração da internet, mas uma completa mudança de paradigma.
A ladainha contada pelo Dawkins & CIA é uma espécie de último suspiro do mecanicismo. Reza essa história que o mundo é uma grande máquina, um relógio em ponto grande, e que todos os fenómenos que vemos à nossa volta são fruto de meros acidentes causais que em nada diferem do choque de uma bola de bilhar com outra: sem propósito real, sem qualquer relação intrínseca entre si. Nós, seres humanos, somos uma espécie de anomalia neste sistema. Como tudo o resto, somos o produto das leis contingentes da física e da evolução. Contudo, fomos presentados - ou amaldiçoados - com uma consciência. Essa consciência, ainda que nos tenha ajudado na sobrevivência, cria em nós inúmeras ilusões, faz com que projetemos significados onde estes não existem e com que estejamos sistematicamente errados acerca da verdadeira natureza do mundo. Deste modo, para atingir algum tipo de conhecimento, para fazer ciência, devemos tentar alcançar uma “visão de lugar nenhum” (view from nowhere), desanexar a consciência do mundo, retirar o olho humano da jogada.
Ora, o que o Peterson mostrou a milhões de pessoas é que esse paradigma está a morrer. Não é que o próprio tivesse uma alternativa (em muitos sentidos, o Peterson está ainda a desagrilhoar-se das correntes do cientificismo), mas ele sabia que o mecanicismo não podia ser a resposta definitiva acerca da natureza das coisas. Mais não seja, porque nós não vivemos na história do Dawkins & CIA. Nós não vivemos no mundo em que o amor é uma reação química. E o Peterson, seja pela sua prática clínica, seja pelas suas leituras de Carl Rogers e Viktor Frankl, sabe isso melhor que ninguém: as pessoas precisam de um significado. E não pode ser um significado qualquer, uma mera ilusão. Tem de ser real.
Com isto, o Peterson decidiu fazer algo completamente revolucionário para a geração da internet: levar a bíblia a sério. E a grande mensagem que as suas leituras bíblicas passaram a milhões de pessoas foi que o significado, o símbolo, o sentido não é algo que impomos nas coisas, é a nossa própria forma de interação com o mundo.
O simbolismo que o Pedro atacava é o exato produto da paisagem mecanicista do Dawkins & CIA. Se a realidade não passa de um conjunto amorfo de partículas que se chocam aleatoriamente segundo as contingentes leis da física, tudo o que resta à consciência humana é efetivamente projetar ligações curiosas no mundo, ainda que ilusórias. Tudo o que lhe resta é ver padrões naquilo que nada mais são que meras coincidências. Resta-lhe brincar aos símbolos3, “encantar” a realidade de cima-para-baixo, oferecer alguma consciência e propósito a fenómenos sem qualquer tipo de finalidade ou significado inerente.
Mas tudo muda quando deixamos de ver a consciência como um mero acidente. Tudo muda quando nos recolocamos no mundo. Tudo muda quando percebemos que o significado é fundacional. E assim podemos entender, ecoando Plotino, que “tudo é símbolo”.
A origem do “nothingbutness” parece ser sempre a mesma: um pensador descobre um mecanismo explicativo que resolve uma série de problemas - por vezes, resolve-o até de uma forma muito mais simples e eficiente do que tudo aquilo que tinha visto até então -, daí em diante, vai aplicando a sua descoberta a diversas áreas e, como que por magia, funciona sempre. Mesmo que às vezes seja preciso torcer um pouco a ideia, tudo acaba por se encaixar. Em pouco tempo, chega à conclusão iminente de que descobriu as coisas ocultas desde a fundação do mundo.
Com isto, eu acredito que Girard nos oferece uma das chaves hermenêuticas mais fascinantes e úteis do século passado. Contudo, veja-se que mesmo Nietzsche, Marx ou Freud jamais estiveram completamente incorretos nas suas análises. O seu problema começou quando quiseram ver na sua análise a totalidade do fenómeno. O mesmo acontece com Girard, inclusive na sua interpretação do sacrifício bíblico.
Brincar aos símbolos foi, já agora, o grande ofício do ocultismo e hermetismo modernos.