Descobri recentemente, para meu alívio imediato e tormento subsequente, que a preguiça jamais foi um pecado capital. A razão do alívio é relativamente clara: se a preguiça não é um pecado capital, a louça na banca não constitui sacrilégio, o quarto desarrumado não me danará eternamente a alma, o ensaio que jamais escreverei não determinará o meu juízo final… Um afago para a alma.
O problema, razão do tormento subsequente, é que, ao que parece, a “preguiça” costuma traduzir um termo bem mais perturbador: a acídia.
Pelo que percebi, a acídia é uma espécie de apatia ontológica. É o famoso café com leite, nem quente nem frio, nem doce nem amargo, nem branco nem preto. São os desprezíveis descomprometidos à entrada do inferno de Dante que, por nunca terem tido causa alguma, não são quistos nem no Céu nem no Inferno, condenados portanto a correr eternamente atrás de um estandarte insignificante enquanto vermes devoram os seus pés. São os mornos que o Apocalipse de João escatologicamente denuncia: “por que não és quente nem frio, mas morno, vomitar-te-ei da minha boca” (e creem os incautos que o Hieronymus Bosch precisava de alucinógenos para conceber a sua arte).
Segundo Tomás de Aquino, é dominado pela acídia aquele que tem condições de ser e fazer diferente por um ato de vontade, mas é incapaz de agir. Os gregos chamar-lhe-iam akrasia (ἀκρασία), “não ter comando de si mesmo”, fraqueza da vontade.
Seja como for, é contra isso que me insurjo. É para não ser morno que começo esta Antologia de Miscelâneas Desprezáveis. Como deixa claro o título, esta antologia será revolucionária por congregar não uma série de trabalhos notáveis, mas antes miscelânias de textos perfeitamente desprezáveis: por germinar, disformes, embrionários, amorfos, impressionistícos, erráticos, como quiserem. A ideia é dar alguma forma às infindáveis notas de iPhone que estão para futuros ensaios como o Neymar está para menino. No processo, espero driblar a demónio do meio-dia.
Costumo justificar a falta de textos neste substack com o mestrado, com a falta de tempo, com as obrigações profissionais… Ora, nada mais fácil do que polir um pouco as centenas de notas já concebidas e atirá-las para a Miscelânea, certo? Assim o faremos.
Para selar a primeira edição, deixo uns apontamentos que surgiram quase como uma epifania durante uma aula do Tim Crane sobre o conceito de “intencionalidade” na semana passada. O texto, claro, nada tem a ver com a intencionalidade, coisa que atesta a atenção que prestava ao seu sermão Brentanista. É antes uma pequena incursão sobre a forma como concebemos os génios e os clássicos. Cá vai.
Creio que foi o Harold Bloom que disse certa vez que o clássico é aquele que supera os grilhões do seu tempo. Essa ideia encontra os seus ecos no belo ensaio O que é o Contemporâneo? de Giorgio Agamben, que afirma (tacitamente) que os clássicos são sempre contemporâneos. Esta é, creio, a forma mais clássica de pensar os clássicos: sempre presentes, perenemente relevantes, irremediavelmente atuais. Isto aplica-se, claro, também ao génio que produziu o clássico. O génio, seja Aristóteles, Platão, Shakespeare, Dostoievski, Mozart, Kubrick, etc., é sempre contemporâneo. Existe nele um elemento universal e eterno, sendo a produção da sua obra como que uma ascese neoplátonica pelas sete esferas astrais, que irrompe por fim no plano estático e sereno do éter, onde habitará pela a eternidade no seu estatuto lendário.
Longe de mim desmerecer o valor dessa venerável tradição. É inegável que existe, efetivamente, algo de contemporâneo nos clássicos. Mas parece-me que, num exercício de dialética hegeliana, poderíamos afirmar o exato oposto dessa tese para, quiçá, atingir uma síntese mais elevada. Isto porque, num certo sentido, todos os clássicos são também perfeitamente anacrónicos, distantes e idiossincráticos.
Não, não estou a dizer que os génios eram “homens do seu tempo”, esse triste epíteto atribuído aos tão absolutamente destituídos de espírito que julgam conter na prisão do seu tempo a totalidade da experiência humana. Ou talvez esteja. Mas de forma muito qualificada. Não é que Aristóteles seja um homem do seu tempo da mesma forma que o mesquinho incapaz de conceber qualquer outra forma de existência é um homem do seu tempo. Antes, Aristóteles foi um homem do seu tempo no sentido em que o condensou tão perfeitamente que assim o transcendeu.
O génio, eu diria, é não só Um homem do seu tempo, ele é O homem do seu tempo que, no ápice da sua genialidade, presenteia a eternidade com a perfeita condensação da sua época.
Como Augusto Fischer sintetiza perfeitamente em Inteligência com dor: Nelson Rodrigues ensaísta: “depois dele [do grande autor], e por causa dele, enxergamos com mais clareza o que veio antes, os precursores, o que era apenas rabisco, intuição, hipótese, o que vivia em latência, em estado dicionário, e ganhou enunciação na grande obra, que recolhe uma tradição dispersa e lhe confere sentido e integridade”.
Isto cria um aparente paradoxo: é ao ser o mais perfeito homem do seu tempo, que o génio transcende o seu tempo.
Homero era perfeitamente helenístico, Aristóteles perfeitamente ateniense, Platão perfeitamente filósofo, Aquino perfeitamente escolástico, Bach perfeitamente barroco, Goethe perfeitamente romântico, Hume perfeitamente moderno, Shakespeare perfeitamente Elizabetano, e por aí vai.
Agora, se sendo perfeitamente idiossincráticos, cada um desses génios é também perfeitamente contemporâneo, é porque cada época carrega no seu seio um pedaço da eternidade. O génio é aquele que captura esse pedaço e o sublima na sua obra.
A idiossincrasia dos comuns, dos “homens do seu tempo” ordinários, cega-os ao eterno. Incapaz de olhar além do seu horizonte, o “homem do seu tempo” tem o seu espírito inundado por irrelevâncias, efemérides e mesquinhices. E no topo do seu trono de insignificâncias, ora crê-se, quando de espírito mais presunçoso, rei da história, senhor de todas as possibilidades, pico da humanidade; ora, quando de espírito mais angustiado, ralé da humanidade, escória da história, o mais miserável dos miseráveis. Os dois presos pelos grilhões do seu tempo, ambos constrangidos pela sua contemporaneidade.
A contemporaneidade do génio, por sua vez, liberta-o: oferece-lhe, novamente, um pedaço do eterno.
Entendemos assim, no nosso exercício de dialética Hegeliana, que a tese e a antítese que ofereci trabalham em perfeita consonância para produzir a síntese superior que é o génio (e o clássico). É por ser contemporâneo que o génio é anacrónico; e é por ser anacrónico que o génio é contemporâneo.